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POR TERRAS DE MOÇAMBIQUE

De que festa é a nostalgia?

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 Quando pisou chão de Maputo, lembrou-se do amendoim assado na areia. Esquecera a “ordem” dada a quem levava máquina fotográfica - “quando começar a chorar não me tirem fotografias”; pressentiu na boca o sabor da manga com sal…

A entrada no liceu António Enes obrigava a madrinha. A de Marta Brinca foi Amélia Muge. No professor amigo do professor Romero de Magalhães descobriu um seu antigo professor do António Enes.
Gaiata, entrava com a mãe pela porta de serviço do “Polana”, carregando víveres que alimentariam a elite reluzente daquele pentágono estrelar. Voltou passados vinte e tal anos, entrou agora pela porta da frente que nunca antes se atrevera a galgar. O porteiro Albino, peito grande à medida do mostruário de medalhas que oferece aos hóspedes e objectivas, lembrou-se da Marta gaiata. A mulher do Presidente emocionou-se uma vez mais, jorrava com prazer o sotaque do mercado Xipamanine onde a mãe vendia; na ilha da Inhaca o empregado de mesa enalteceu-lhe o saber dizer em moçambicano — “se não viesse com a delegação, ninguém diria que alguma vez tinha saído de Moçambique”.

Quis dar mais razão ao homem da Inhaca, e desentranhou, como só os africanos sabem fazer, a carne que a casca do coco protege até soar a hora da trituração por dente europeu.
Já antes, Henrique Fernandes exibira a técnica de ordenha do coco — um furo é pouco, que se esventre em duplicado e jorrará leite, sabor melhor se o coco for menino, na Inhaca o coco era velho e soube bem na mesma.
A comitiva carregava gente com necessidade urgente de desfolhar álbum de recordações. Álbum talvez não. Troquemo-lo pelos livros de pintar que todos cumprimos antes de chegar à escola: a comitiva carregava então gente com necessidade urgente de colorir os desenhos arquivados na memória, e que o tempo desbotara, descarnara, deixando apenas a marca dos contornos.

Marta Brinca, Henrique Fernandes, José Manuel Alves*, Patrocínio Tavares, ainda outros.
José Manuel Alves deixara o Luabo com dois anos, nada lembrava da terra-alcova, apenas o feitiço que não lhe deu descanso enquanto não conseguiu pássaro voador que transpusesse em hora certa a distância Beira-Luabo. Nesta nascera Alves e estudara Fernandes, a primária. A viagem fez-se em frágil teco-teco de ventoinhas, comandante Sousa ao leme, trabalhando em paz depois de muitas horas cumpridas fazendo a guerra nos Migs russos.
No livro de honra de bordo escreverão o nome de Francisco Brandão, beirão da Beira moçambicana — já em tempos fora, mais sua mãe, anfitrião de Miguel Torga e do Padre Valentim Marques em terras da Beira. Prestável como poucos, conseguiu o avião, tratou da logística, acompanhou a comitiva da saudade, mais sua mulher Laura. Torga já nos deixou, os olhos que viram o que Torga viu em 1973 seguiram no teco-teco, olhos de Valentim Marques.

Os olhos de José Manuel Alves aguaram junto ao hospital vizinho da casa em que nascera — há coisas que só se escrevem com lágrimas, trouxe um caracol gigante que apanhou junto ao posto da polícia. Pediu licença para trazer, num saco plástico, terra da terra onde nasceu.

Na escola que Henrique Fernandes frequentou não há hoje giz para colorir o quadro negro. Durante alguns dias os putos terão canetas da Região de Turismo do Centro para escreverem seus nomes — Dione Eusébio, Ete Alberto, Paulino Francisco.
Pela Beira Fernandes viu o Colégio dos Maristas onde estudou, sob a mão férrea do irmão Cordeiro, que colocava os alunos nas duas primeiras filas do salão onde se rezava a missa, e os proibia de virar, uma vez que fosse, a cabeça rumo aos olhares de amêndoa das filhas dos devotos. Fernandes fintou o padre, oferecendo-se para ajudar à missa — o ofício de sacristão não se compadece com baias no olhar, viu os olhos das meninas que queria ver, ganhou aos colegas no catrapisco.

E ainda lhe sobravam pestanas para acompanhar os mais galanteadores ao edifício das “Mères”, o colégio de freiras onde só estudavam meninas. E forças para integrar os “pelotões de fuzilamento” criados no período em que o irmão Cordeiro adoeceu. Frei João, que o substituiu, era mais liberal, o liberalismo presta- se a excessos, todos o sabemos — Henrique Fernandes assume hoje, porque o crime já prescreveu, várias “execuções sumárias”, valha-nos o facto do colégio sofrer ao tempo embargo de balas de verdade — autorizados, apenas projécteis em forma de bola, com a textura do papel higiénico molhado.
Livro de colorir que pede o lápis-rosa mal se aterra no aeroporto de Maputo: Henrique era frequentador assíduo daquele espaço, onde namorou a filha do comandante da unidade de bombeiros ali residente.

Na Ilha dos Portugueses — vizinha da Inhaca, quarenta e cinco minutos distante de Maputo, em lancha rápida —, Fernandes recorda o tempo em que tentou reprovar no exame de admissão: o chumbo sabia a aventura, em catamaran que construiria mais alguns amigos, para rumar em direcção ao mundo. Não reprovou, catamaran ao fundo…
Patrocínio Tavares pediu licença ao guarda do cinema Xénon, para entrar no cinema que foi seu, rodapé do prédio que construiu já depois da independência. Sentou-se numa das cadeiras, pisando o mar de pipocas rescaldo do filme da véspera. Lembrou com orgulho o sistema de ar condicionado que circulava pelas cadeiras, para evitar que os cinéfilos levassem com o frio nos costados. Mostrou a todos, com o mesmo orgulho, o espaço entre as filas, permitindo às pessoas circular sem obrigar a que os já sentados se levantassem, como acontece hoje em quase todos os cinemas-sanduíche.
O prédio foi nacionalizado, Patrocínio pediu licença para entrar, não conseguiu dizer ao guarda que tinha sido ele a construir o edifício. Custou-lhe vir cá para fora, para dizer que às vezes, por vezes, “é preciso ter um coração muito forte”…

Acompanhando o poeta moçambicano Heliodoro Baptista, apetece perguntar: “De que festa é a nostalgia?”

* in memoriam

Dinis Manuel Alves (texto e fotos)
Publicado no semanário "Jornal de Coimbra", dirigido por Jorge Castilho
29 de Julho 1997