A resposta soa dura, na boca de uma criança: "Isto aqui está fôdido!" Para início da conversa, perguntáramos a Ito como estavam as coisas. A criança, de 14 anos, afinal já não é criança nenhuma. Vagueava pela ilha do Mussulo, em Luanda, na companhia de três inseparáveis amigos : o Joãozinho, de 11 anos, o Adão, também de 11, e o Canganjo, de sete. Quem é o adulto que toma conta de vocês? "O adulto sou eu!", respondeu Ito.
Já não é criança nenhuma. É o capitão da turma, todos sem verem pai e mãe há anos, porque o pai de um "anda no buraco", à pesca, e já não aparece há muito tempo. E os pais e mães dos outros também não vêm... "Nunca vem, não anda a vir..." Cedo damos conta de que fazemos perguntas que não deveríamos fazer. Perguntas inquinadas de um universo que não é o de Joãozinho, que não é o de Canganjo.
Para quê inquiri-los das brincadeiras? "A gente brinca a comer coco e a pescar peixe. Às vezes não come..." "Brinca com as fisga..." "Gosta de ver karáte..." O karáte vê-se na tv do Kota Fidel, "que vai na pesca e trabalha nos branco". Parece que o velho Fidel leva umas croas a quem quer assistir ao karáte, se calhar o wrestling, na sua tv. Mas os putos do Mussulo não pagam. Pagariam com quê? "Entramos de favor..."
Para quê perguntar-lhes do Natal? "No Natal, brinquedos para nós? Nenhum. Foi um dia normal..." Igualzinho aos outros dias? "Bem, a tia Joana deu bolo e gasosa, e banana..." Ito, Joãozinho, Adão e Canganjo vivem numa casa de rama. O problema não é a casa, não é a rama... "Só tem um pano para dois quarto..."
Pela tv, ou das conversas com os outros adultos da ilha, já inculcaram o catecismo pró-MPLA, melhor dito, anti-Unita... "O melhor é o Dos Santos. O Savimbi é Santanás, mata gente, está a matar toda a nossa família..." Passar a vida vagueando pelo Mussulo? Talvez não, que os putos até têm sonhos: "Gostava de trabalhar numa empresa..." "Gostava de fazer serviço de limpeza..." "Gostava de ser guarda de casa de um branco..." Vinte anos de independência, para Joãozinho sonhar em ser guarda de casa de um branco...
Texto publicado no Jornal de Coimbra.
Dinis Manuel Alves no Mussulo, Luanda, Janeiro 1996