"Decidimos que seria manchete. Comecei a preparar o título. Algo como 'imprensa amarela leva cineasta ao suicídio'. Entrou na sala em que era desenhada a primeira página nosso chefe de reportagem, Calazans Fernandes. 'Na minha terra amarelo é cor bonita', berrou. Tentei contar a história da yellow press. Não deu a mínima. 'Põe marrom, é cor de merda".
Por Argemiro Ferreira* (Nova York) Observatório da Imprensa, 1997
Na mesma semana em que o New York Times deixou de lado a tradição para introduzir cores em suas edições diárias, o debate em torno do acidente que matou a princesa Diana em Paris também contribuiu para reabrir tema sugestivo no Brasil. Por que a cor do jornalismo de escândalo, amarela ao nascer com Hearst e Pulitzer nos EUA, é marrom no Brasil?
A partir da própria idéia de se atribuir uma cor, qualquer que seja ela, a esse tipo de jornalismo - sensacionalista, sangrento, fofoqueiro, irresponsável - chegamos à vertente da notícia como mercadoria e da imprensa como negócio, um e outro consagrados no modelo atual de mídia nascido nos EUA e exportado para toda parte no pacote da globalização econômica.
É curioso observar a aparente relutância, quase vergonha, com que o austero New York Times, a velha dama cinzenta, rendeu-se afinal às cores vivas - armas com as quais Hearst e Pulitzer já esgrimiam no século passado e os tablóides de escândalo esbanjam hoje, a disputar leitores ao lado de cada caixa de supermercado americano, de costa a costa. A primeira coisa difícil de entender em relação aos primeiros tempos do que os EUA batizaram de "yellow journalism" é por que, se nasceu nos dois lados da briga Hearst-Pulitzer, um desses personagens históricos que o viveu intensamente está condenado ao opróbrio e à execração pública, enquanto o outro é consagrado como prêmio de excelência no ofício. Porque Pulitzer jamais ganharia um Pulitzer. Dificilmente alguém ousaria contestar que, se praticado em nossos dias, o jornalismo de Joseph Pulitzer (1847-1911) certamente não ganharia qualquer prêmio Pulitzer como os 74 arrebatados ao longo dos anos pelo New York Times - embora a responsabilidade pela escolha dos ganhadores seja da Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia, criada por ele. O jornalismo do New York World de Pulitzer pouco diferia do rival New York Journal, de William Randolph Hearst (1863-1951) - cujos excessos o talento de Orson Welles, diretor e ator, perpetuou em Cidadão Kane [Citizen Kane - O Mundo a seus Pés], marco na história do cinema. Na guerra da circulação, os dois lados não hesitavam sequer em contratar quadrilhas de gângsteres para explodir os caminhões de distribuição do rival.
Na questão específica da cor amarela foi Pulitzer o pioneiro, ainda no século passado. Vamos aos fatos. Inventadas as máquinas de quatro cores na década de 1890, os desenhos e cartuns de humor tornaram-se extremamente populares ("The Funny Pages", ou simplesmente "The Funnies"). E Hearst passou a superar o rival nesse campo, com presença forte da sátira política.
O desenhista Richard Felton Outcault, inicialmente um artista técnico, atraíra a atenção de Thomas Edison, que em 1889 o contratara para integrar o grupo dedicado à exposição itinerante sobre a luz elétrica. Quando a viagem se estendeu a Paris, Outcault aproveitou para passar alguns meses no Quartier Latin, alimentando o sonho de tornar-se pintor profissional. De volta aos EUA, ganhou emprego na revista Electrical World e, atento aos "Funnies", começou a enviar desenhos aos jornais. O World de Pulitzer publicou sua primeira colaboração em 1894. No ano seguinte, contratou-o para desenhar uma tira regular, para a qual a inspiração de Outcault eram os imigrantes estrangeiros que transformavam o panorama da cidade. Dos personagens criados então, o que conquistou o público foi um garoto que "falava" não na forma de balões como os quadrinhos de hoje, mas em textos (linguagem popular, deliberados erros de ortografia) colocados em sua camisola larga e comprida. Antes, em preto e branco. Depois, a camisola mudava de cor - do marrom claro ao azul, tons desbotados, pouco definidos.
Onde entram os quadrinhos e Orson Welles
Coube ao homem que controlava as cores na máquina impressora do World, Charles Saalberg, descontente com o que estava sendo feito, tentar uma cor amarela bem viva na camisola do menino. Foi um sucesso. O personagem - que, apesar de quase bebê tinha nome, Mickey Dugan - virou o "yellow kid" (garoto amarelo), a grande bandeira do jornal de Pulitzer. Passou a simbolizar ainda os extremos a que chegavam Pulitzer e Hearst na guerra da circulação. E a cor tornou-se emblemática do jornalismo que os dois praticavam na obsessão de vender jornal e fazer dinheiro, inclusive pela ferocidade com que brigaram pelo personagem. O garoto virou até personagem de show da Broadway.
Restou a Hearst roubar Outcault do rival, com proposta irrecusável. "Why is the Sunday's Journal colored supplement the greatest ting on earth?" (Porque o suplemento colorido do Journal de domingo é a maior coisa sobre a terra?), dizia uma legenda depois da troca. O desenhista só pediu registro do copyright em1896. Ia de um lado para o outro até Pulitzer decidir publicar o garoto sem Outcault, apoiado no pretexto de que era o verdadeiro dono, por tê-lo publicado primeiro. A história do "yellow kid" não pára aí. Na esteira de Outcault vieram os "Katzenjammer Kids" de Rudolph Dirks - que, rebatizados como "The Captain and the Kids" (no Brasil, "Sobrinhos do Capitão"), chegaram aos nossos dias - e a própria revolução dos quadrinhos, exportada dos EUA para o mundo. Mas o jornalismo sensacionalista, na linha de Hearst e Pulitzer, conservou a cor.
Nada impede que alguém, como eu, tenha simpatia tanto pela trajetória de Outcault como pelo amarelo. Ambos me fascinam. Mas Hearst e Pulitzer foram longe demais. O feito maior deles foi fabricar a guerra com a Espanha, que a ficção de Orson Welles, pouco interessada nos detalhes, só atribui a Charles Foster Kane - ou seja, a Hearst.
A verdade histórica, no caso, está menos com Hollywood do que com o desenhista que à época perpetuou para as gerações seguintes um cartum eloquente: dois garotos amarelos (com camisolas idênticas às do personagem de Outcault), um com a cara de Pulitzer, o outro com a de Hearst, a brincar com cubos de letras e a formar, juntos, a palavra W-A-R (guerra).
Na mutação cromática, a cruzada de Dines
Até aí, o jornalismo amarelo. A cor, temos de convir, entrou nessa história como Pilatos no credo. Discriminação e preconceito, tão comuns nos EUA, voltam-se até contra cores. Amarelo tem conotação de covarde. Os Beatles o reabilitaram no Submarino Amarelo, mas ali mesmo abraçaram outro preconceito - contra o azul. Pois "blue", em inglês, é também melancolia. Não sei até onde tais conotações negativas passam de uma cultura a outra. No Brasil o verbo "amarelar" também significa "acovardar-se". Intrigava-me, no entanto, a tradução de amarelo para marrom. Até conhecer melhor o que foi, em 1960, a cruzada do Diário da Noite do Rio, então sob a liderança de Alberto Dines, contra a imprensa de escândalos.
Ali deu-se a mutação cromática, conforme depoimento do próprio Dines, provocado por mim. É a história também de uma campanha corajosa, que culminou com o desaparecimento, sem choro nem vela, de um punhado de publicações de escândalo e chantagem (títulos como Confidencial, Escândalo, etc.), feitas pelas mesmas pessoas, entre elas um certo Fred Daltro. Segundo o relato de Dines, chegara à redação do jornal a informação de que um jovem aprendiz de cineasta (por enquanto, apenas assistente de produção) matara-se porque estava sendo chantageado por uma daquelas revistas de escândalo. Daltro era ligado à polícia e suas revistas viviam de extorquir dinheiro de pessoas que fotografava em bailes de Carnaval e outros lugares. Dines conta: "Decidimos que seria manchete. Comecei a preparar o título. Algo como 'imprensa amarela leva cineasta ao suicídio'. Entrou na sala em que era desenhada a primeira página nosso chefe de reportagem, Calazans Fernandes. 'Na minha terra amarelo é cor bonita', berrou. "Tentei contar a história da yellow press. Não deu a mínima. 'Põe marrom, é cor de merda'". Era certamente argumento até mais convincente do que aquele que dera origem à expressão original norte-americana - em última instância, devida ao homem que controlava a tinta nas máquinas de Pulitzer. Calazans, grande jornalista, tornou-se mais tarde secretário de educação do Rio Grande do Norte, o primeiro a utilizar o método Paulo Freire, como lembra Dines. "Foi uma das decisões mais rápidas que já tomei", explica ainda. "Tirei amarelo e coloquei marrom - com a vantagem de ter uma letra a menos. E o assunto virou cruzada. Fui ameaçado de morte, tive de andar com guarda-costas durante algumas semanas. Mas fechamos as revistas, com a ajuda decisiva de Carlos Lacerda, governador da Guanabara. Ele gostava muito do nosso tablóide e conhecia a história da 'yelow press' americana".
As definições do dicionário - e a de Geisel
O nome pegou e hoje está dicionarizado. Imprensa Marrom, segundo a primeira edição do Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, é "a que explora o sensacionalismo, dando larga cobertura a crimes, fatos escabrosos e anomalias sociais". Definição bem parecida com a usada no Webster americano para "yellow journalism". Como o yellow americano, o marrom brasileiro é também xingamento - em especial quando alguém, quase sempre encarapitado no poder, não gosta das verdades incômodas saídas no jornal. Meu exemplo predileto é uma declaração do general Ernesto Geisel, ao tempo em que eu era editor-chefe do valente semanário como parte da tal "abertura lenta, gradual e segura".
E Geisel: "No Brasil, só imprensa marrom não tem liberdade". O tom era imperial. Mesmo se não o fosse, nenhum dos jornais excluídos por ele do rótulo, por não sofrerem censura à época, ousaria contestá-lo.