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LEGENDAS RETORCEM FACTOS

O polvo dialéctico

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Desde 30 de outubro de 1869, quando a revista canadiana The Canadian Illustrated News inaugurou o fotojornalismo, ao publicar um retrato do príncipe Arthur, o mundo discute se uma imagem vale mesmo mil palavras. Talvez valha, mas é a legenda que determina o valor de face. "A foto por si só não mente nem diz a verdade", ensina a jornalista Simonetta Persichetti, que prepara uma tese na PUC de São Paulo sobre a manipulação da fotografia na imprensa. "A interpretação está na legenda".

No dia-a-dia do foto-jornalismo, feito com flagrantes e cenas cuidadosamente arrumadas, as letrinhas tornam a imagem singela ou explosiva. A questão explodiu, mais uma vez, a propósito de uma foto distribuída pela agência de notícias Reuters em 14/1, dia em que disparou a desvalorização do Real. A foto documentava uma cena trivial no Brasil: estóicos contribuintes aglomeravam-se numa agência do Banerj, no Rio, para pagar o IPVA de seus carros. A legenda mudou a interpretação da cena: "Brasileiros formam uma longa fila no lado de fora da porta de um banco no Rio.", dizia, na primeira linha, relacionando a aglomeração com a "profunda crise financeira" do país. A conclusão óbvia era a de que as pessoas acorriam ao banco para sacar reais ou trocá-los por dólares.


A foto era verdadeira, mas a legenda, mentirosa. Em saudável e raro lampejo de crítica de mídia, alguns meios de comunicação e o governo brasileiros protestaram contra o logro da Reuters. O Jornal Nacional vociferou num editorial e O Globo tratou do assunto em duas edições, mobilizando repórteres em seis cidades. O embaixador do Brasil no Reino Unido, Rubens Barboza, formalizou um protesto no Press Complaints Commission, o conselho de auto-regulamentação da imprensa britânica. Pelo menos dois jornais influentes, o americano The New York Times e o inglês Daily Telegraph, publicaram a foto com a legenda errada.


Se quer aprender algo com a maracutaia da Reuters, a imprensa precisa revisar métodos de fotógrafos e de redatores de legenda. Uns agem como cenógrafos. Outros parecem escrever sob a regência da primeira lei da dialética, segundo a qual "tudo se relaciona". A repercussão ainda estava quente quando, em 25/1, o Jornal do Brasil estampou em quatro colunas uma foto da agência France Press mostrando uma criança numa escada de Pequim, ao lado de um caneco. A foto ilustrava um artigo sobre pedintes, desemprego ou queda de renda na China? Nenhuma dessas coisinhas miúdas. A reportagem, creditada à agência EFE, informava que as autoridades chinesas temiam repercussão da crise brasileira em sua economia. Como um polvo dialético, a legenda serpenteava: "Menina pede esmolas nas ruas de Pequim, onde o governo garante que não haverá mudança na economia, muito menos na política cambial".


O inequívoco caráter documental da fotografia tem sido subvertido por práticas antiéticas na produção e registro de cenas jornalísticas. É comum fotógrafos produzirem informação ou ajeitar a cena para obter a imagem desejada. Há os que fazem uma pré-produção, agindo como um diretor de teatro que coordena a postura dos atores. A revista O Cruzeiro, a Veja dos meados do século, imprimiu um disco voador no céu da Barra da Tijuca, no Rio, numa produção de Ed Keffel e João Martins. Outra dupla famosa da revista, Jean Manzon e David Nasser, flagrou o deputado Barreto Pinto de casaca e cueca. O deputado alegou que estava se vestindo, os repórteres disseram que ele posou, mas ao final do bate-boca Barreto Pinto foi cassado por indecoro parlamentar. Mais: na edição de 9/9/92, a revista Veja estampou fotos vitaminadas d "Jardim do Marajá da Dinda". As imagens, feitas para o portfolio da empresa de jardinagem, valorizavam com lentes e ângulos especiais o jardim e a cascata que o então presidente Fernando Collor mandara construir em sua residência particular.


Há episódios mais recentes e polêmicos. Em março de 1998, o jornal carioca O Dia foi acusado de montar uma foto do mecânico O. e sua mulher S. cheirando cocaína espalhada sobre a Bíblia. Com eles estava o filho J., de oito anos. A reportagem integrava a série "Os filhos do vício". O governador Marcello Alencar mandou investigar o crime do mecânico. A versão de O. para a polícia: o repórter Rodrigo França deu-lhe R$ 50 para se deixar fotografar fungando um pó branco que na verdade era maisena. O repórter, apoiado pelo jornal, admitiu ter dado o dinheiro, mas sustentou que o pó era cocaína.


Há casos em que a fonte diz que se arrepende de montar a cena para a foto. O comerciante Carlos Farinha, dono de uma loja de CDs importados, deplorou na seção de cartas da Folha de S.Paulo (22/1) que foi induzido pelo fotógrafo Eduardo Knapp a fazer um cartaz sob medida para a reportagem "Preço de livro e CD sobe até 30% em São Paulo". Segundo Farinha, o fotógrafo pediu que ele escrevesse e pregasse na vitrine um aviso de que os preços dos CDs importados estavam em dólar. "Sendo assim e sob orientação do fotógrafo, afixei o cartaz na vitrine da loja apenas para que as fotos fossem feitas, sendo imediatamente retirado após isso." Knapp rebateu: "...foi dele a iniciativa de colocar um aviso na vitrine. Em momento algum isso lhe foi pedido. Esperei que ele fizesse o cartaz, fiz a foto e fui embora." É a palavra de um contra a do outro, mas, em ambas as versões, fica patente que o cartaz não existia antes da chegada do fotógrafo, e se foi retirado ocorreu aí uma fraude.


A fina arte de enganar o público com imagens montadas ou aditivadas pela legenda é pródiga nas capas de revista. Discos voadores, ETs, homens grávidos (com barriga de sete meses...), animais falantes (sem áudio...), monstros de toda a ordem e milagres compõem a galeria de fraudes, praticadas com o auxílio de títulos dúbios ou cinicamente assertivos. O ilusionismo é tradicionalmente enriquecido com o recurso da fotomontagem. Exemplo: em 28 de novembro de 1977 a revista Manchete chegou às bancas soltando rojões: " Exclusivo ­ A verdadeira origem do homem ­ O antropólogo Richard Leakey e sua descoberta, o Homo Habilis". A foto exibia Leakey, respeitabilíssimo arqueólogo, ao lado de um africano com uma máscara simiesca. Anos depois, o editor Roberto Mugiati se disse surpreso com o efeito do estelionato: "A capa vendeu 95% da edição e ­ curioso ­ em muitas regiões do interior do Brasil os leitores acharam que retratava, fielmente, uma variedade perdida da raça humana".


A manipulação de imagens tem sido farta na TV, por edição e dramaturgia. Os jornalistas precisam levar em conta que sua presença altera o comportamento das fontes e, por conseqüência, dos fatos que vão narrar. É comum a cena ser inspirada pela filmagem. Quantas vezes já não vimos torcedores ou foliões passarem da abulia à ebulição ao virem a câmera, e só então o repórter afirmar: "Reina grande animação aqui..." Isso é show com horário, não é notícia. Os noticiários de TV têm grande apreço pela marcação dramatúrgica dos entrevistados. O repórter caminha na calçada, contando a história de uma pessoa, e de súbito encontra a pessoa...


A TV Globo é mestra em preparar textos que trombam com as imagens. Um dos mais rumorosos foi o das "torneiras de ouro" da casa do embaixador Marcos Coimbra em Miami. Não passavam de lata dourada. Resplandece na galeria das fraudes a legenda que a emissora preparou para noticiar o gigantesco comício que, em 25 de janeiro de 1984, reuniu dezenas de milhares de pessoas na Praça da Sé, em São Paulo, numa manifestação pelas Direitas Já. Como a Globo censurava reportagens sobre o movimento, a legenda lida pelo locutor Cid Moreira informou que a multidão reunira-se para festejar o aniversário da cidade.

©Instituto Gutenberg
Boletim Nº 25 Série eletrônica
Março-Abril, 1999