Em Notre-Dame de Paris, escrito por Victor Hugo aos 28 anos, primeira edição em 1831, Claude Frollo aponta para um livro que tinha na escrivaninha, aponta depois para a enorme catedral que se construía ali perto, e sentencia: “Isto matará aquilo!”.
Isto era o livro, aquilo a catedral. O esclarecimento mataria a Igreja. O bojudo e soberbo edifício religioso medieval ameaçava ruína, a poderosa pedra fraquejando perante o frágil papel.
A cena passava-se no século XV, de então para cá o presságio legendado “Isto matará aquilo!” siamizou-se aos discursos de qualquer velho do restelo que cuide bem do seu estatuto.
Ontem, aqui mesmo na Lousã, em notável conferência no Auditório da Biblioteca Municipal, o Professor Carlos Amaral Dias falava-nos dos medos que acompanham a aurora do presente milénio.
No que toca às artes difusoras, no que reporta aos media, nos seus mais diversos suportes, o espantalho do medo sempre acompanhou as dores de parto de um qualquer nascituro, chame-se ele jornal, livro, rádio, televisão, internet. O medo da morte, não do bebé, mas dos vizinhos. Medo de se ter parido um assassino. A aura encantatória que embala o berço do recém-nascido é arco-íris de pouca dura. Ele vem ao mundo não para emparceirar, mas para matar; vislumbram-se-lhe nas páginas, nas ondas, nos tubos catódicos, nos bites, uma sanha invulgarmente assassina.
Isto, o jornal, matará o livro. Isto, a fotografia, matará a pintura. Isto, o cinema, matará o jornal mais o livro. Isto, a rádio, matará o cinema. Isto, a televisão, matará a rádio, o cinema, o teatro e o livro. A internet é uma serial-killer – vão todos a eito, não tarda nada – televisão, rádio, livro, cinema, teatro, o que mais haja por aí.
Os pregoeiros do Isto matará aquilo! beneficiam do beneplácito que lhes concedem todos os que preguiçam na memória. Se a quisermos exercitar um pouco, lembrar-nos-emos que o livro começou por ser excentricidade, extravagância em mãos de particulares, isto se exceptuarmos a Bíblia. É compreensível a raiva dos monges-copistas contra os mestres-impressores. Para sinalizarmos que o livro, para alguns espécie impressa em vias de extinção, também veio ao mundo com as mãos sujas de sangue.
Muito antes, já Sócrates temia os efeitos da disseminação da escrita, por considerar que ela poderia tornar o acto da leitura algo de impessoal, descaracterizando a natureza do discurso.
Mnemosina, com lugar privilegiado na mitologia, também não deve ter visto com bons olhos a chegada da escrita.
O problema não parece estar na natureza e peculiaridades dos suportes, mas nas virtualidades difusoras destes. Quem se assusta não é o povo, mas as elites. Cai-lhes mal tudo aquilo em que pressintam vulgarização. A Bíblia, traduzida do restrito latim para o alemão foi o sacrilégio que todos conhecemos.
Copérnico atrasou a publicação de De revolutionibus orbitae coelestium ("A Revolução das Órbitas Celestes", receando os efeitos nefastos que a descoberta do heliocentrismo provocaria na massa inculta. Temia Copérnico que "a água límpida da ciência virasse lama ao chegar ao conhecimento do povo". Valdo de los Rios suicidou-se, oferecendo o cadáver aos que nunca lhe perdoaram a traição de ter levado Mozart à gentalha. Os mesmos que chingam o povo por este preferir a Romana, Nel Monteiro ou Céline Dion.
Vale para a música, também para muitas outras artes de ajuntamento.
Pego no livro “A Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho e a Cultura Física das Classes Trabalhadoras”, de D. Manuel Bernardo da Costa de Sousa de Macedo (Mesquitela)”, Edições FNAT, Lisboa, 1944. Leio a páginas 13:
“Dizia o Doutor Adriano Rodrigues ao analisar, em 14 de Julho de 1935, o problema da cultura popular e o aparecimento do decreto que criou a F. N. A. T. o seguinte: - ‘O trabalhador português, até há pouco tempo, apenas tinha a taberna, o ‘foot-ball’ e o ‘dancing’ (o das cidades) como centros recreativos.
Ora a taberna deseduca e gera somente vícios e desvios, o ‘foot-ball’ mal conduzido deforma e tuberculisa, os ‘dancings’ não passam de centros de devassidão e tuberculose. Tudo isto contribui em Portugal para aumentar a degenerescência da raça e cavar abismos de ódio entre as almas”.
Em 1950, Guerreiro Murta assim pessimizava os dias vindouros:
“Os rapazes só gostam de devorar publicações fantasiosas, sem o menor desejo de se instruírem. Só correm atrás do enredo, à bisca do fim da aventura, passando por cima dos pontos sérios.
Os desportos hoje absorvem-lhes todo o tempo. A paixão do futebol invadiu-lhes o cérebro, e fez que eles dessem um pontapé nos livros; a doença do automobilismo atacou as famílias ricas, e o amor ao estudo partiu para sempre dos seus lares”.
Jeanneney também nos recorda o espalhanço daqueles que previram que a TSF serviria essencialmente para o telefone: “Desenhos da Belle Époque mostram ricos burgueses de telefone encostado à orelha, preparando-se para ouvirem Caruso a cantar Verdi à distância. A ideia dominante é a de que se comunicará de um ponto a outro. Em suma, o telefone refreia a imaginação”.
Na minha modesta opinião, a quem profetiza o fim dos livros, também dos jornais, até mesmo do papel, não lhes chega o devido desconto. Na loja da credibilidade, tais profecias devem ser colocadas na secção dos saldos. Não arrisco nada neste vaticínio, cautelosamente respaldado em quem tem autoridade na matéria.
Por exemplo, Umberto Eco. Não acredita no fim dos livros: “São como o martelo e a colher: depois de criados, não houve mais forma de melhorá-los. O mesmo ocorre com o espremedor de limão. Os objectos de leitura formam parte desses maravilhosos utensílios que a humanidade inventou e ainda nos vão acompanhar por muito tempo, para sempre” – defendia o escritor em conferência realizada na Argentina, Outubro 1998, relato do Estado de S. Paulo.
Há, sem dúvida, profundas mutações na tecnologia informacional. Os computadores e a internet trouxeram-nos uma nova ideografia, uma escrita dinâmica com significativo recurso a ícones, estilhaçando também a linearidade do texto impresso. Mas é por entre esses estilhaços que os cidadãos se deixam prender nas teias do hipertexto, fabuloso convite à leitura de outros textos, hoje ali mesmo ao lado. Antes precisávamos de nos levantar, procurar nas estantes lá de casa ou na biblioteca longínqua complementos sugeridos por uma determinada leitura. Hoje, tais complementos encontram-se à distância de um clique. E cada complemento traz novas sugestões também.
O telefone parece ter acabado com as cartas para a namorada, da madrinha de guerra para o raso sofrendo na mata ou no quartel, do pai que sempre fez questão de acompanhar a mesada com meia dúzia de letrinhas. Mas logo chegou a internet para nos obrigar a escrever cada vez mais. Pausadamente, em e-mail que pode hibernar na pasta rascunhos à espera de melhor inspiração, ou compulsivamente, nos chats e nos mirc’s.
Uma rápida vista de olhos a um qualquer quiosque de jornais chega para comprovarmos o efeito gerador de novas leituras provocadas pelos computadores, pela televisão, pela internet. Tive o cuidado de as contar, hoje de manhã, numa banca de Coimbra. Por defeito, eram 37 revistas e jornais.
Logo, a leitura não está em crise, ao contrário do que muitos propalam. E nem é preciso incluir nestas contas a leitura das legendas dos filmes, em sala ou na televisão. Estudos há que atestam a importância desta prática no combate ao analfabetismo funcional.
A ameaça aos livros e à leitura não está nos novos media. Importa deixarmos o tranquilo embalo das ideias feitas e colocar o dedo nas feridas que alguns argutos tão bem conseguem esconder. As ameaças moram mais nos gabinetes dos governantes quando estes se ausentam ostensivamente das políticas de difusão do livro e da leitura, quando emperram o funcionamento das bibliotecas públicas, quando atrasam, por mais de um ano, a chegada às bibliotecas dos livros da quota do depósito legal. As ameaças moram, e muito, nos distribuidores e livreiros, que à segunda, quarta e sexta se queixam de que as pessoas lêem cada vez menos, mas à segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado e domingo tratam de abocanhar a parte de leão dos lucros por obra alheia. Arrecadassem menos, por exemplo a mesma percentagem que é atribuída aos autores, e os livros tornar-se-iam produtos acessíveis a muito mais bolsas. Não acontecendo tal, não se podem queixar muito alto da praga das fotocópias, muito menos do tempo consumido pelos jovens com a internet, a biblioteca dos pobres.
O que vaticino para os livros vale também para os jornais. A crónica da morte anunciada destes vai continuar a escrever-se, mas os danados teimarão em resistir à redacção do epitáfio. Há muitos perigos à espreita, sem dúvida nenhuma. Assistimos à pecha do publijornalismo, a uma forte compulsão para o espectáculo, com a tradicional news of the day transformando-se, aos poucos, no show of the day.
Há a informação superabundante, que leva ao aparecimento dessa bizarra figura do objector de actualidade. Informação superabundante mas, paradoxo dos paradoxos, inquinada do pecado da rotina, bebida em poucas fontes, originando indesejável profusão de conteúdos miméticos.
Há confusão nos conteúdos, com os ditames sinérgicos transformando os jornalistas em media workers. Hoje exige-se polivalência mediática, não como um enriquecimento profissional dos jornalistas, antes para servir implacáveis lógicas contabilísticas de redução dos défices dos conglomerados-patrões. Há, sem dúvida, derrapagens a mais até para o gosto de um cidadão indulgente.
Como os códigos deontológicos tratam de notícias, não de conteúdos, estes parecem poder vogar, sem traumas e sem vergonha, no subsolo do mínimo ético exigido à profissão.
“A informação como vocês a concebem, como vocês a praticam, a caça às notícias, os furos, é tudo romantismo ultrapassado. Acabou. O que vocês fazem não tem futuro. O futuro é a transmissão de dados” — declarava, nos finais dos anos 70, Gerald Long, director geral da Reuters.
O póquer dos dados transmitidos assume-se como jogo do vale-tudo: “A partir do momento em que passou a ser considerada como uma mercadoria, a informação deixou de estar submetida aos critérios tradicionais de verificação, de autenticidade ou de erro. Ela rege-se agora pelas leis do mercado. Esta evolução é a mais significativa entre todas as que afectaram o domínio da cultura. Consequência: os velhos heróis do jornalismo foram substituídos por um número impressionante de trabalhadores dos media, praticamente todos imersos no anonimato. A terminologia utilizada nos Estados Unidos é reveladora deste fenómeno: o media worker suplanta frequentemente o jornalista” — constatava Ryszard Kapuscinski em 1999.
Os empresários assumem esta reviravolta sem rebuços. Francisco Pinto Balsemão, presidente do Grupo Impresa, confrontado com a possibilidade do seu empório avançar para uma rádio na internet, respondia desta forma, em Maio de 2000: “ (…) Julgo que vale a pena pensar na rádio via internet e valerá sobretudo a pena quando as redacções forem cada vez mais multimédia. Redacções onde quem vai fazer uma notícia para uma publicação na imprensa escrita poderá ao mesmo tempo fazer a entrevista para a rádio e até, talvez, filmará…”.
É o jornalista transformado em mutante, na feliz expressão de Ingrid Carlander: “Para aderir ao novo modelo cultural, o jornalista vai transformar-se em mutante, integrando sob o signo da instantaneidade todos os medias, imprensa escrita, televisão, redes, imagem, na triste incapacidade de realizar o mais simples inquérito de fundo”.
Não auguro tempos fáceis para a imprensa escrita que, tal como referi na sessão de lançamento deste livro, em Coimbra, há quinze dias atrás, é o pior meio para dar notícias. Ficamos informados, mas sujamos os dedos; não temos o frisson do directo de repórteres algures na secção de desporto ou de política internacional; as novas são todas em diferido, e servem-se em fiadas de letrinhas monocórdicas. A última página não se despede com um sorriso – Obrigado por ter estado connosco, espero por si amanhã.
Na compita dos suportes, é evidente que a imprensa escrita perde, aos pontos, para a rádio, para a televisão e para a internet.
Mas a imprensa escrita continua a ostentar pergaminhos que nenhum outro meio pode pavonear. Em investigação que ultimo, desta feita focalizada no jornalismo produzido pelas redacções televisivas, noto pujança bojuda da imprensa escrita junto dos outros meios, no que à formação da agenda noticiosa concerne. As agendas da imprensa escrita surgem como agendas-alavanca das agendas televisivas, funcionando estas como agendas-montra do já publicado em papel. A imprensa escrita assume-se assim, por virtualidades próprias, ou por abdicação das redacções televisivas, como um poderoso news-promotor destas últimas.
Se tal acontece, deve-se sobretudo ao facto da imprensa escrita não ter abdicado ainda do chamado jornalismo de investigação.
Em tempos de miscigenação, importa apostar em marcas distintivas, não oferecendo, todos e cada um, sempre mais do mesmo. Importa apostar no jornalismo de investigação, ter arte para romper a camisa de forças da agenda imposta por outrem, e partir à descoberta das estórias de um povo que tem muito para contar.
Em Notre-Dame, Quasimodo ansiava mergulhar no bulício fervilhante das ruas que lhe estavam vedadas. Importa que os jornalistas não se acomodem na direcção inversa, deixando-se transformar, por modorra, em voluntários Quasimodos exilados nas redacções.
Pouco tempo antes de partir, Hermínio Monteiro era peremptório: “Já morreram todos os que diziam que os livros iam acabar”. Com vénia, diremos que já morreram quase todos os que diziam que os livros e os jornais iam acabar. Mas é bom lembrar aos jornalistas que, na saga do Isto matará aquilo, por vezes Isto vence, e Aquilo morre mesmo. Se ainda fosse vivo por estes dias, Quasimodo teria assistido ao toque de finados da sua profissão de sineiro. Hoje venderia Swatch, Timex ou Citizen.
Dinis Manuel Alves
Lousã, 1 de Junho de 2003