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POR DINIS MANUEL ALVES

Jornalistas com Lágrimas

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Já tinha visto a peça na CNN, um velório na Califórnia, uma vítima de Covid amortalhada ao som de “Amor Eterno”, que Rocio Durcal celebrizou. “Como quisiera que tu vivieras / Que tus ojitos jamas se hibieran cerrado nunca…”.

Voltei a vê-la quando, mais tarde, após a redifusão do seu trabalho, Sara Sidner irrompeu em lágrimas por mais de um minuto. Estava em directo.
Sara pediu desculpa porque tinha aprendido que uma mulher nunca deve ser vista a chorar.
Dias mais tarde, Brianna Keilar, pivot da mesma estação, chorou a meio da leitura das derradeiras mensagens escritas por outras vítimas da pandemia aos que amavam.
Antes, 7 de Novembro, dia da confirmação pelos media da vitória de Joe Biden, Van Jones, comentador da CNN, também chorou, em directo.

ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL "DIÁRIO DE COIMBRA", 08.02.2021 (ver pdf)

Acho linda a palavra “lágrima”, por cá travestida de “emoção” a mando do politicamente correcto. X emocionou-se, H não conseguiu conter a emoção, por aí…
Consta que o politicamente correcto tem patente registada nos EUA mas, pelos vistos, ainda não baniram a palavra nem proibiram os jornalistas de chorar.

Venho à página para sinalizar o óbvio: os jornalistas são seres humanos, são pessoas antes de serem jornalistas, enquanto jornalistas, depois de pousarem definitivamente microfone, teclado ou caneta.

As lágrimas de Sara, Brianna e Van só são notícia porque, manda o imaginário, mandam muitos jornalistas e também lentes de renome, que o jornalista veste carapaça que o torna imune aos sentimentos, traja máscara que lhe esconde a dor, o riso, as lágrimas, o fastio, o amor, a compaixão.
Só assim “Santa Objectividade” se manterá no altar onde alguns se lembraram de prantar o jornalismo, Hollywood ajudando à festa com mil e sete filmes dedicados ao herói sem mácula, ao Homem de Ferro.

E isso é mau para todos os que consomem notícias. E isso é muito mau para os jovens que sonham um dia chegar à profissão.
Pasmei quando, em tempos idos, anos 90, ouvi profissional a entrar na veterania, responder a pergunta feita por uma jovem de plateia repleta de estudantes de jornalismo que, “sim senhor”, se ele soubesse, em primeira mão, que o pai tinha cometido um crime, seria o primeiro a dar a notícia.
Assim mesmo, sem hesitar. Só na declaração, claro. Tudo o mais é, era basófia.

Porque é que o profissional tarimbado se viu na obrigação de tal dizer?
Para não beliscar o culto da persona em que se investiu, com gáudio prazeroso, assim que assinou a primeira notícia.
Acontece com muitos, contribuintes líquidos da deseducação para os media. Ganha-se pouco, é verdade, mas pavonear a persona compensa imenso, atenua as dores da precariedade, do quase pagar para trabalhar. Damos-lhe 511 euros ao mês, mais o suplemento de Persona associado a todos os profissionais aqui da redacção, é pegar ou largar…

Há dias atrás revia um dos episódios da série “Fotografia Total”, do consagrado fotojornalista Luís Carvalho, ao tempo emitida pela TVI24.
Programa dedicado a Artur Pastor, fotógrafo por cinco décadas que nos deixou obra ímpar.
Aos olhos dos puristas, Pastor arde no inferno porque tinha o hábito de varrer as ruas antes de fotografar. Xô folhas mortas.
Mais, conta-nos a viúva. Ficava de braços caídos quando a desgraça tentava a máquina.
“Ele não era homem da desgraça. Olhe, uma vez estávamos na Nazaré e aconteceu um naufrágio. As mulheres gritavam, choravam, e fomos todos para a praia. Pensa que ele abriu a máquina? Não abriu. Ele era incapaz de fotografar desgraças… Não sei, acho que não tinha coragem de ver as pessoas a sofrer e ele a fotografar” – conta Rosalina Pastor.

Alguma coisa contra as fotos de Arthur Fellig, ou dos quatro do Bang Bang Club?
Nadinha de nada mesmo.
Apenas para sinalizar que Pastor respeitava as lágrimas de pessoas como ele, lágrimas negras da cor do desespero.
Como eu respeito e agradeço as lágrimas de Sara Sidner, Brianna Keilar e Van Jon.
 

Dinis Manuel Alves