1 A importância crucial atribuída aos títulos de artigos jornalísticos leva a que fiquem sob a alçada das editorias e/ou das chefias de redacção. O jornalista redige o seu texto, incluindo uma proposta de título que pode ou não ser respeitada pelas chefias. O título, quando bem construído, apelativo quanto baste, ajuda a “vender”a notícia, potencia a leitura do artigo, é o sinal que diz ao leitor “PARE E LEIA!”. Um texto excelente pode seguir para o cemitério se tiver a encimá-lo um título desastrado. Daí a atribuição desse poder às editoriais.
Já quanto à primeira página dos jornais e às capas das revistas, aí a responsabilidade pertence totalmente à chefia da redacção: se o título ajuda à leitura de um artigo, as primeiras páginas viabilizam a compra do jornal.
Manchetes e demais chamadas na primeira página ocupam, assim, um lugar crucial no que reporta à sobrevivência de um jornal.
Há quem estique a corda de vez em quando, há quem inclua esta prática no livro de mau estilo da redacção, tudo para conseguir que os jornais não morram nos escaparates. São os títulos impostores, conversa para outra ocasião.
Em 1993 calcorreámos montes e vales, batendo à porta das aldeias que iriam morrer passados alguns anos. Aldeias com três, quatro, meia dúzia de habitantes.
Em Felgueiras resistiam três pessoas.
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“Em FELGUEIRAS (Oleiros, distrito de Castelo Branco), também é no pequeno écrãn que vêem a missinha dominical, quando as forças são poucas para uma hora de caminho até à igreja da Amieira. A Maria Alice e a Maria do Carmo vão então até casa do snr. Domingos, o único que por ali tem TV. Minto — a Maria Alice também tem, mas está avariada, assim como o rádio.
Mais ninguém tem receptor de televisão por ali? Que não se pergunte assim, porque mais ninguém ali vive. São três os que ficaram com a chave para fechar a aldeia, daqui a anos. Domingos tem 86 anos, Alice 68 e Carmo 38 ou 39, que a mãe não sabe ao certo a idade da filha.
Em tempos a aldeia teve umas vinte e tal casas habitadas, agora apenas duas:
"Numa casa eram oito irmãos, na nossa éramos sete. Tudo se produzia, tudo se tratava. Era uma aldeia com muita lida, as larguezas que a gente tinha. Antigamente ninguém queria abalar de cá, meu pai e meu avô foram aqui nascidos, as mulheres é que as iam buscar fora. Agora tudo se foi" — lamenta-se Ti Domingos, que por ali se quer finar, desejo que os filhos respeitam, apesar de o levarem de vez em quando a passar umas temporadas em Coimbra:
"Sinto-me bem aqui, até que possa dar um passo. É aqui o meu ninho, distraio-me a regar o milho, e isto dá-me vida".
Uma vida triste que adivinhamos no rosto de Maria Alice, viúva sete anos depois de se ter vestido de noiva. A filha ficou-lhe por companhia, nunca estudou por falta de posses. Trabalham as duas na agricultura, vivem do que colhem mais 17 contos de pensão. Estugou o passo quando viu um jornalista intruso nas cercanias, e cremos não ter percebido bem o que ali fomos fazer. Parca nas palavras, porque o jornalista deve ser algum fiscal que anda a tirar elementos para os mandar embora dali. E Alice não quer sair. Bem lhe basta o temor de ver partir a filha, que ainda se não casou, mas tem agora, aos 38 ou 39 anos, um pretendente de fora:
"Se ela casa, bem tenho que me ir embora também!"
Por certo para o Vidual de Baixo, onde nasceu, aldeia sita no concelho da Pampilhosa da Serra.
Alice foi uma das mulheres que os homens de Felgueiras iam buscar fora, para casar.”
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O texto que enviámos para a “Grande Reportagem” era encimado pelo título, óbvio, “Aldeias que vão morrer”.
Eu escrevia desde Coimbra, cidade onde residia e ainda resido. Enviava texto e slides para a redacção da revista, de grande prestígio e periodicidade mensal.
Não me lembro de qualquer telefonema de Miguel Sousa Tavares para discutir partes desta ou de outras reportagens. Melhor, houve um caso, mas esse referente às fotografias de entrevista ao ex-comandante sandinista Tomás Borge Martínez, feita na República Dominicana (assunto que abordarei noutro “making of”).
Nos primeiros dias do mês lá ia eu ao quiosque comprar a revista, algo que fazia desde os seus primeiros números, quando não sonhava que algum dia pudesse ver o meu nome inscrito na publicação.
E era ali que ficava a saber se a minha reportagem tinha merecido honras de publicação.
Por vezes, entre o envio e a publicação passavam alguns meses.
Num dos casos não soube em visita ao quiosque, mas sim em andamento, rumo a férias no Algarve. Fui ouvindo, deliciado, o spot que publicitava a edição acabada de sair, destacando a minha reportagem, já não me lembro qual. O spot passava na TSF, hora a hora, antes dos noticiários, e lembro-me que era poderoso, vibrante, como eram ao tempo a maior parte dos spots da rádio em que também trabalhei..
Ao folhear a edição de Agosto de 1993, encontrei a minha reportagem sobre as aldeias condenadas a morrer. O título, escolhido em Lisboa, fugiu da morte, preferindo estratégia intertitular com título de filme, desconstruindo o título original, como muitas vezes acontece, negando-o mesmo.
“Alice ainda mora aqui” foi o título que matou “As aldeias que vão morrer”.
Miguel Sousa Tavares (MST), Mónica Bello ou outro integrante da redacção terão visto filme que também vi, e de que gostei bastante, sobre uma Alice que não tinha ficado por aqui, que se tinha ido embora.
O filme já tinha 19 anitos, colheita de 1974, assinatura de Scorcese:
"Alice Já Não Mora Aqui’ conta a história de uma mulher de 35 anos que se vê sozinha depois da morte do seu marido e sem dinheiro para cuidar do filho, uma criança de onze anos. Alice Hyatt (Ellen Burstyn) decide, por isso, voltar à sua terra natal, Monterey. Depois de uma paragem em Phoenix, onde se envolve num tumultuoso relacionamento com um homem casado, Ron (Harvey Keitel), Alice estabelece-se em Albuquerque, onde aceita ser empregada de mesa, apesar do seu sonho passar por ser cantora. Durante a sua estadia, a jovem viúva conhece David (Kris Kristofferson), acabando por se envolver com ele. Este filme de Martin Scorsese já recebeu vários prémios, entre eles o Óscar para a melhor actriz entregue a Ellen Burstyn”.
Ao protagonismo que dei às aldeias moribundas a título, MST preferiu nomear uma das resistentes, Alice. E trocar as voltas ao título de Scorcese.
O título ficou menos informativo, mas estilisticamente mais belo. E apanhava boleia em título com carreira já feita, adicionando-lhe a transgressão da sua negação. A intertitularidade, submundo desse universo fascinante da intertextualidade, vive muito dos jogos de palavras, de desconstruções do género da que aqui referimos.
A reportagem pode ser lida aqui:
https://guardafactos.com/sartigo/index.php?id=35965
Quanto ao filme, pode encontrar detalhes profusos aqui:
https://www.planocritico.com/critica-alice-nao-mora-mais-aqui/
No elenco encontramos Ellen Burstyn, Kris Kristofferson, Diane Ladd, Harvey Keitel e Jodie Foster, esta com onze anitos por alturas da rodagem.
Dinis Manuel Alves
7 de Setembro de 2020