“Sou o Manuelito, minha profissão é andar por cima deste pneu. Mas só quando estou de férias. Ele me leva a passear no meu bairro. Na Malhangalene, a gente brinca muitas brincadeiras. Eu vivo naquela casa ali. Do lado, está tudo gradeado. Os donos têm medo dos ladrões. Na minha casa, a porta se abre com qualquer ventania. A pobreza vê-se na porta. Ninguém entra (…)
Este pneu ganhei na minha engenharia. Comecei a arranjar os carros que nunca andam. A malta entra nesses carros que estão a dormir nos passeios e brincamos de arranjadores. Ganhei pneu para as minhas corridas pela cidade” — escreveu o moçambicano Nelson Saúte há meses atrás.
Manuelito pode ser também António Azarias, e o texto poderia apresentá-lo assim:
“Sou o António, minha profissão não tenho nenhuma. Espero os turistas que vão no batelão para a praia da Macaneta. O rio que separa Marracuene da Macaneta já teve hipopótamo, agora não tem mais porque o sal do mar entrou no rio e afugentou o bicho grande lá para cima. Sou desenhador, sei fazer o “s” ao contrário, desenho dicionários.
Ponho a bandeira das duas línguas de brinde ao dicionário, atenção que as bandeiras são bonitas, porque eu desenho com lápis de cor. Eu ofereço os meus dicionários para as pessoas conhecerem melhor a minha língua, ofereço, não vendo. Os turistas depois dão sempre meticais porque gostam do meu dicionário, mas eu não peço nada. Só dão porque querem e gostam do meu dicionário.
Por causa da guerra que acabou ainda ontem, os turistas vêm quase nada, e o dinheiro que eu ganho não chega para comprar chifambos novos.
Sou o António Azarias, ponho “lisboeta” em cima da bandeira de Portugal, e ofereço aos lisboetas de Coimbra, Évora, Amadora e tanto faz. Até dou brinde nas costas do dicionário, porque eu sei desenhar carros, e ponho a marca nas rodas.
Bravo António Azarias”.
Dinis Manuel Alves, Maputo, 30.06.1997
Publicado no semanário "Jornal de Coimbra"