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POR FRANCISCO BICUDO

A entrevista-testemunho: quando o diálogo é possível

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A entrevista é a alma, o coração do bom jornalismo, ponto de partida e momento fundamental para a elaboração de narrativas que articulem histórias e personagens e que sejam capazes de reportar os complexos acontecimentos da contemporaneidade.

Uma boa entrevista é capaz de dar vida e salvar qualquer matéria; com ela, pode-se chegar à compreensão mais profunda dos fatos e de seus personagens, desvendando mistérios que nos pareciam indecifráveis e colhendo relatos que nos ajudam a formar visões e concepções plurais da realidade que nos cerca. As entrevistas nos levam aos detalhes e aos pormenores, nos conduzem da superficialidade ao mergulho, juntam os pontos para formar imagens mais nítidas e significados mais atraentes. Quantas vezes não temos uma vaga idéia sobre determinado assunto, um cenário ainda muito nebuloso e incipiente e, lendo uma entrevista que mereça ser classificada dessa maneira, não saímos dela e levantamos da cadeira com a sensação de que ‘bem, ah, então pode ser assim ou dessa outra maneira, são essas as variáveis envolvidas, isso aconteceu por conta de tais e tais antecedentes, puxa, mas eu nem tinha pensado nisso’, e a certeza de que aquela leitura contribuiu com a nossa formação e inserção cidadã no mundo?

PARA LER NA ÍNTEGRA AQUI (pdf, 11 páginas)

Na outra ponta, uma conversa mal conduzida, feita de maneira apressada e apenas para cumprir tarefa burocrática, que produz dois ou três rabiscos num bloco de anotações, pode fazer com que o jornalista perca mais alguns fios de cabelo. Na redação, ao sentar para escrever a matéria, ele descobre que simplesmente não a tem, pois suas anotações são insuficientes para preencher as tais das linhas que ele deve produzir para aquela edição do jornal. E o drama é ainda maior: por conta de sua atitude de pressa, de dar conta dos prazos e da velocidade de produção industrial, por conta do desleixo, despreparo profissional, desconhecimento, falta de experiência ou mesmo de irresponsabilidade, o jornalista rompe o contrato cidadão de prestação de serviço público que deve uni-lo ao seu leitor; ao perder-se em repetições e enrolações, em informações compactas e desconectadas, desprovidas de sentidos, a transcrição/tradução de sua entrevista nega ao público o direito de se informar.

Fica claro, portanto, que a entrevista, em primeiro lugar, não pode ser vista como mera técnica, algo que serve para tirar de quem está do outro lado do balcão duas ou três palavras que possam legitimar e dar reconhecimento público a premissas já estabelecidas. Ela não se resume a apenas sustentar o que o repórter e o veículo pensam previamente – mas precisam, de alguma maneira, ‘colocar na boca’ de alguma fonte autorizada e reconhecida. Singular, dinâmica e muitas vezes um salto na escuridão, ela é uma atividade humana que coloca, frente a frente, duas ou mais pessoas, com suas histórias, visões, jeitos de pensar e de ser, opiniões, dúvidas, avaliações e conflitos. No limite, e inspirando-me em Cremilda Medina, arrisco dizer que se trata de um momento épico, único e especial, de encontro entre sujeitos, personalidades e almas, onde se faz presente o embate democrático e saudável de idéias, trajetórias e singularidades. Se de fato vivida, e não apenas cumprida, pode se transformar num intenso momento de catarse e proliferação de análises, reflexões e experiências de vida, de onde, como já dizia Medina, tanto entrevistado quanto entrevistador sairão transformados e modificados pelo intercâmbio, choques e interfaces ocorridos. Trata-se de uma corrente elétrica de alta voltagem que atinge as duas pontas. Nessa perspectiva, ela é capaz de produzir choques de conhecimentos e informações que, pouco depois, irão, de maneira sistematizada e inteligível, ganhar a arena pública e participar, em maior ou menor escala, da construção das sociedades e definição de seus rumos.

Observatório da Imprensa, 13.06.2005